sábado, 20 de janeiro de 2018

O Relatório Final do Sínodo Extraordinário dos Bispos de Outubro de 1985 sobre o Concílio Vaticano II (2ª parte)

Depois da 1ª parte, concluo assim com a publicação desta 2ª parte dos excertos do Relatório Final (RF), à qual acrescentei um Posfácio, o artigo com o título acima.

II. Temas Particulares do Sínodo

«[…] uma atenção especial deve ser prestada ao Fenómeno do secularismo. Sem qualquer dúvida o Concílio afirmou a legítima autonomia das realidades temporais (GS, 36 e noutra parte). Neste sentido, uma secularização correctamente entendida deve ser admitida. Mas nós estamos a falar de algo totalmente diferente: do secularismo que consiste numa visão autonomista do homem e do mundo e que deixa de lado a dimensão do mistério, de facto negligencia-a e nega-a. Este imanentismo é uma redução da visão integral do homem, uma redução que leva não à sua verdadeira libertação, mas a uma nova idolatria; à escravidão das ideologias; a uma vida em redutoras e frequentemente opressivas estruturas deste mundo» (RF, II, A 1).

«A primeira missão da Igreja, sob o impulso do Espírito Santo, é pregar e testemunhar as boas e alegres notícias da eleição, da misericórdia e da caridade de Deus que se manifestam na história da salvação, a qual, através de Jesus Cristo, atingem o seu cume na plenitude dos tempos e que se comunicam e oferecem a salvação ao homem por virtude do Espírito Santo. Cristo é a luz da humanidade!» (RF, II, A 2).

«Toda a importância da Igreja deriva da sua conexão com Cristo. […] Nós não podemos substituir uma visão falsa e unilateral da Igreja como puramente hierárquica por uma nova concepção sociológica também ela unilateral» (RF, II, A 3).

«[…] o Concílio proclamou a vocação de todos os fieis à santidade (cf. LG 5). […] Nos nossos dias, sobretudo, quando tantas pessoas sentem um vazio interior e uma crise espiritual, a Igreja tem de preservar e energicamente promover o sentido da penitência, da oração, da adoração, do sacrifício, da entrega de si, da caridade e da justiça. […] Hoje, temos uma tremenda necessidade de santos, através de quem precisamos de implorar a Deus assiduamente» (RF, II, A 4).

«[…] a pregação do Evangelho está entre os principais deveres da Igreja, e de modo especial dos bispos, e hoje em dia isto assume a maior importância (cf. LG 25)» (RF, II, B a) 1).

«Para esta Constituição [a Dogmática Dei Verbum] também é necessário evitar uma leitura parcial. Em particular, a exegese do significado original da Sagrada Escritura, muito altamente recomendada pelo Concílio (cf. DV 12), não pode ser separada da tradição viva da Igreja (cf. DV 10). A falsa oposição entre responsabilidades doutrinais e pastorais tem de ser evitada e ultrapassada. De facto, a verdadeira intensão do trabalho pastoral consiste em realizar a verdade da salvação e torná-la concreta, a qual é, em si mesma, válida para todos os tempos. Como verdadeiros pastores, os bispos devem indicar o caminho certo ao rebanho; fortalecer a fé do rebanho; manter os perigos longe dele» (RF, II, B a) 1).

«Assim, os bispos são não apenas os únicos mestres dos fieis, mas arautos da fé que leva novos discípulos a Cristo (cf. LG 25). A evangelização é o primeiro dever não só dos bispos, mas também dos padres e dos diáconos; realmente, de todos os cristãos. Hoje, por toda a parte na Terra a transmissão da fé e dos valores morais aos jovens, derivados do Evangelho, está em perigo. Frequentemente, o conhecimento da fé e a aceitação da ordem moral são reduzidas ao mínimo. Em consequência, é requerido um novo esforço na evangelização e numa integral e sistemática catequese» (RF, II, B a) 2).

«Com alegria reconhecemos o que foi feito pelos teólogos para elaborar os documentos do Concílio Vaticano II e para ajudar no sentido da sua fiel interpretação e frutuosa aplicação no período pós-conciliar. Mas por outro lado, lamentamos que as discussões teológicas dos nossos dias tenham ocasionado por vezes confusão entre os fieis. Por conseguinte, a comunicação e o diálogo recíproco entre os bispos e os teólogos são necessários para a edificação da fé e sua mais profunda compreensão» (RF, II, B a) 3).

«Muitos [dos bispos sinodais] expressaram o desejo de que fosse composto um catecismo ou compêndio de toda a doutrina Católica respeitante tanto à fé como à moral, que pudesse ser, como [sempre] foi, um ponto de referência para os catecismos ou compêndios que são preparados nas várias regiões. A apresentação da doutrina deve ser bíblica e litúrgica. Tem de ser uma sólida [sound, no original] doutrina, adaptada à vida presente dos cristãos» (RF, II, B a) 4).

«A renovação litúrgica não pode ser limitada a cerimónias, ritos, textos, etc. A participação activa, tão aumentada, felizmente, depois do Concílio, não consiste apenas na actividade exterior, mas acima de tudo na participação interior e espiritual, em vívida e frutuosa participação no mistério pascal de Jesus Cristo (cf. SC 11). É evidente que a liturgia tem de favorecer o sentido do sagrado, realçando-o com brilho. Tem de estar permeada pelo espírito de reverência, adoração e glória de Deus» (RF, II, B b) 1).

«Os bispos deveriam não meramente corrigir os abusos, mas deveriam também explicar claramente a toda a gente o fundamento teológico da disciplina sacramental e da liturgia. A catequese deve novamente tornar-se uma via que leva à vida litúrgica (catequese mistagógica), como era o caso nos começos da Igreja. Os futuros padres deveriam aprender a vida litúrgica de uma maneira prática, assim como saberem teologia litúrgica» (RF, II, B b) 1).

«[…] a eclesiologia de comunhão não pode ser reduzida a puras questões organizacionais ou a problemas simplesmente relacionados com poderes. Não obstante, a eclesiologia de comunhão é também o fundamento da ordem na Igreja e especialmente de um correcto relacionamento entre unidade e pluriforma [pluriformity no original] na Igreja» (RF, II, C 1).

«[…] mas é necessário distinguir pluriforma de pluralismo puro. Quando a pluriforma é verdadeiro enriquecimento e com ela transporta plenitude, constitui verdadeira catolicidade. O pluralismo de posições opostas [em questões] fundamentais, ao contrário, leva à dissolução, destruição e perda de identidade» (RF, II, C 2).

«O espirito colegial é a alma da colaboração entre os bispos ao nível regional, nacional e internacional. Acção colegial, no sentido estrito, implica a actividade de todo o Colégio, junto com a sua Cabeça, sobre toda a Igreja. Na sua máxima expressão encontra-se num Concílio Ecuménico. Em toda a questão teológica respeitante à relação entre o Primado [do Pontífice Romano] e o Colégio dos bispos, não pode fazer-se uma distinção entre o Pontífice Romano e os bispos considerados colectivamente, mas antes entre o Pontífice Romano [«só»] e o Pontífice Romano junto com os bispos (LG, Nota Explicativa Prévia, 3), porque o Colégio existe com a sua Cabeça e nunca sem ela - o sujeito do supremo e pleno poder em toda a Igreja (LG 22)» (RF, II, C 4).

«Nós os bispos, desejamos ardentemente que a comunhão incompleta já existente com as Igrejas não-Católicas e comunidades, possa, com a graça de Deus, chegar ao ponto da plena comunhão» (RF, II, C 7).

«O diálogo [ecuménico] deve ser espiritual e teológico. O movimento ecuménico é favorecido de modo especial pela oração mútua. O diálogo é autentico e frutuoso se apresentar a verdade com amor e fidelidade com respeito à Igreja. Neste caminho, o diálogo ecuménico leva a que a Igreja seja vista mais claramente como sacramento da unidade» (RF, II, C 7).

«[…] nós afirmamos a grande importância e oportunidade da Constituição Pastoral Gaudium et Spes. Ao mesmo tempo, contudo, nós notamos que os sinais do nosso tempo são, em parte, diferentes dos do tempo do Concílio, com maiores problemas e angústia» (RF, II, D 1).

«[…] a relação entre a história humana e a salvação é para ser explicada à luz do mistério pascal. Certamente a teologia da cruz não exclui de todo a teologia da criação e incarnação, mas como é claro, pressupõe-na. Quando nós cristãos falamos da cruz, não merecemos ser rotulados de pessimistas, mas antes fundamentamo-nos sobre o realismo da esperança cristã» (RF, II, D 2).

«A partir desta perspectiva pascal que afirma a unidade da cruz e da ressurreição, descobre-se o significado verdadeiro - e o falso - do assim chamado “aggiornamento”. Uma fácil acomodação [adaptação ou compromisso: accomodation, no original] que poderia levar à secularização da Igreja é de excluir. Também de excluir, é um fechamento imóvel sobre si mesma da comunidade dos fieis. Afirmada em vez disso, é uma abertura missionária para a salvação integral do mundo. […] Mas a salvação integral é obtida só se estas realidades humanas forem purificadas e depois elevadas pela graça e familiaridade com Deus, através de Jesus Cristo, no Espírito santo» (RF, II, D 3).

«A partir desta perspectiva nós descobrimos também o princípio teológico para o problema da inculturação. Porque a Igreja é comunhão, a qual junta diversidade e unidade estando presente através do mundo, ela toma de cada cultura tudo o que encontra de valor positivo. Contudo a inculturação é diferente de uma simples adaptação exterior, porque significa a íntima transformação de autênticos valores culturais pela sua integração no Cristianismo de variadas culturas humanas» (RF, II, D 4).

«O Concilio Vaticano II afirmou qua Igreja Católica não recusa nada do que é verdadeiro e santo nas religiões não-Cristãs. […] O Concílio também afirmou que Deus não nega a possibilidade de salvação a ninguém de boa-vontade (LG 16)» (RF, II, D 5).

«As possibilidades concretas de diálogo nas várias regiões dependem de muitas circunstâncias concretas. Tudo isto é também verdade para o diálogo com os não-crentes. O diálogo não deve opor-se à missão. O diálogo autêntico tende a trazer a pessoa humana a abrir-se e a comunicar a sua inferioridade [inferiority no original; gralha em vez de interiority, interioridade?] àquele com quem ele está falando. Mais ainda, todos os Cristãos receberam de Cristo a missão de fazer de todos os povos discípulos de Cristo (Mt 28,18). Neste sentido Deus pode usar o diálogo entre Cristãos e não-Cristãos e entre Cristãos e não-crentes como caminho para comunicar a plenitude da graça» (RF, II, D 5).

«A Igreja deve profeticamente denunciar toda a forma de pobreza e opressão e por toda a parte defender e promover os fundamentais e inalienáveis direitos da pessoa humana. Isto é sobretudo o caso onde esteja em questão a defesa da vida humana desde o momento do seu início exacto; da sua protecção de agressores em cada circunstância; e da sua promoção efectiva em todos os aspectos» (RF, II, D 6).

«O Sínodo expressa a sua comunhão com aqueles irmãos e irmãs que sofrem perseguição por causa da sua fé e que sofrem devido à promoção da justiça; o Sínodo eleva orações a Deus por eles» (RF, II, D 6).

«A missão salvífica da Igreja relativamente ao mundo deve ser entendida como um todo integral. Embora seja espiritual, a missão da Igreja envolve a promoção humana, mesmo em aspectos temporais. Por esta razão a missão da Igreja não pode ser reduzida a um monismo, não importando como este é entendido. Nesta missão existe certamente uma clara distinção – mas não uma separação – entre os aspectos naturais e os sobrenaturais. Esta dualidade não é um dualismo. É assim necessário pôr de lado as falsas e inúteis oposições entre, por exemplo, a missão espiritual e a “diaconia” [13] pelo mundo» (RF, II, D 6).

«Na conclusão desta assembleia, o Sínodo, das profundezas do nosso coração, dá graças a Deus Pai, por Seu Filho, no Espírito Santo pela maior graça deste século [XX], isto é o Concílio Vaticano II» (RF, II, D 7).

«Nós bispos, todos nós, juntamente com Pedro e sob a sua chefia, esforçámo-nos por compreender mais profundamente o Concílio Vaticano II e por o implementar correctamente na Igreja. Foi esse o nosso objectivo durante este Sínodo. […] A mensagem do Concílio Vaticano II já foi bem-vinda com grande acordo pela Igreja inteira, e permanece a “Magna Carta” para o futuro» (RF, II, D 7).

«Finalmente, possa chegar nos nossos dias aquele “novo Pentecostes” de que o Papa João XXIII já tinha falado e de que nós, com todos os fieis, esperamos do Espírito Santo» (RF, II, D 7).

Posfácio

Poder-se-á comentar que ao divulgar (14) este documento dos Bispos de 1985 sobre o CV II, eu estarei a procurar ser conciliador. Concordo! De facto, procuro. No ano que findou (2017) e durante o qual, obviamente sem precedentes na história da Igreja, esta se permitiu, ao mais alto nível, celebrar (sic) a rotura operada no século XVI, chamada Reforma, julgo ser da máxima importância todo e qualquer cuidado e esforço postos na manutenção e até acréscimo da unidade católica, universal, de todos os baptizados na Santíssima Trindade!

Com efeito, a túnica «sem costura, tecida de uma só peça» que revestiu o Corpo de Cristo – do qual a Igreja é misticamente uma concretização - e que os soldados que repartiram as outras suas roupas, após o pregarem na cruz, não ousaram rasgar (cf. Jo 19,23-24) não deverá manter-se assim? Não a romperam os próprios carrascos de Cristo. Efectivamente, diz São João que assim «foi o que fizeram os soldados» (Jo, 19,24). Ora, quanto mais nós, não devemos rasgar ainda mais a túnica, se não desejarmos comportarmo-nos ainda pior que os carrascos de Jesus, mas antes como Seus fieis discípulos!

Mais: penso que não podemos separar uns dos outros - com hermenêuticas da rotura, independentemente de quem as aplica e do lado de onde provêm - os 21 Concílios ecuménicos que fazem parte da história da Igreja (15), ocorridos desde o ano 325 até 1965. Todos eles foram legítimos, confirmados ou pelo menos aceites pelo Sucessor de Pedro; todos ocorreram naturalmente em diversos contextos históricos; com documentos, afirmações ou condenações de diverso peso, natureza e força dogmática, pastoral ou disciplinar.

Penso que a interpretação de todos os 21 Concílios ecuménicos, só pode fazer-se segundo uma «hermenêutica da reforma, da renovação na continuidade». Penso que ou se aceitam todos os 21 Concílios, em bloco, embora tendo em conta tudo o que teologicamente os distingue entre si; ou se rompe com todos, ao infligir entre tal e tal Concílio uma descontinuidade fatal. Penso que não há alternativa, segundo a lógica racional mais elementar, mas, sobretudo, segundo a fé católica e apostólica, da qual o legítimo Sucessor de Pedro, como Cabeça visível, e com ele os Bispos, cum Petro et sub Petro, são os garantes ao longo da História.

Nem devemos privilegiar um qualquer Concílio em relação a outro: «A Igreja é uma e a mesma através de todos os Concílios» (cf. RF, I,5).

E concluo com uma exortação: uma vez que estamos na Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos - já em 1894, Leão XIII encorajava a pratica de uma Oitava de Oração pela Unidade - rezemos pelo incremento da visibilidade da unidade católica, na mesma e única fé, nos mesmos sete sacramentos, na mesma hierarquia! (cf. Catecismo da Igreja Católica, nº 813-816).

Janeiro de 2018, durante a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos

João Duarte Bleck, médico e leigo Católico

Referências (da 2ª parte)

13. Diaconia, palavra de origem grega que significa o serviço que se presta.

14. Recordo que a 1ª parte das duas que constituem este artigo, foi já anteriormente publicada.

15. cf. o respectivo Sumario, pp 8-29, em: Heinrich Denzinger, Peter Hünermann, El Magisterio de La Iglesia Enchiridion Symbolorum Definitionum et Declarationum de Rebus Fidei et Morum, Version castellana de la 38ª edición alemana, Segunda edición corregida: julio de 2000, Empresa Editorial Herder, S.A., Barcelona. 


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1 comentário:

Dhemétrius disse...

Parabéns pela matéria que nos trás à unidade a luz de todos concílios sem a negação de um qualquer.