quarta-feira, 28 de setembro de 2016

É lícito distribuir preservativos para evitar abortos?

cooperação com o mal “é o concurso que se presta à acção má de outro, levando-o a fazer o mal na qualidade de agente principal” (Del Greco, Compêndio de Teologia Moraln. 138). Segundo o mesmo autor, é lícita “quando intervier motivo proporcionado”; e, exemplificando, “pode-se dar vinho a um bêbado para impedir que ele blasfeme” (n. 139).

O moralista é até mais abrangente e chega mesmo a dizer que se pode “sempre cooperar materialmente quando se trata de fazer evitar um mal mais grave” (id. ibid). A esta luz é legítimo — já vi o exemplo algures — procurar persuadir alguém, que esteja disposto a matar um seu rival, a feri-lo “apenas”. Como o pecado é cometido por outrem e como a intervenção fê-lo, na prática, deixar de cometer um pecado mais grave, ela respeita o mandamento da caridade — que obriga a procurar o bem dos outros e se esmerar por atingi-lo. Não só é legítima como, talvez, possa ser moralmente exigida.

Diante destes pressupostos coloca-se a pergunta incómoda: é lícito, portanto, oferecer um contraceptivo a alguém que vai cometer uma relação sexual cujo eventual fruto está disposto a abortar? Em outras palavras: se se sabe que fulano constrangeria a sua namorada a cometer um aborto caso ela engravidasse, será porventura lícito, na eventualidade de não ser possível dissuadir-lhes da fornicação em si, oferecer o preservativo a ele, ou a pílula a ela, a fim de evitar que eles cometam o mal (muito maior) do aborto? O paralelo é notável: a acção é meramente cooperativa e não comissiva, e evitar a morte de um ser humano inocente parece um “motivo proporcionado” a ser levado em consideração.

Não sei se os teólogos morais já se debruçaram sobre o tema, mas penso que há certas particularidades que devem ser levadas em consideração antes de uma resposta ligeira e irrefletida.

Primeiro, a fornicação — ao contrário dos outros exemplos mais fáceis de embriagar ou bater em alguém — é pecado mortal ex toto genere suo (cf. op. cit., n. 82), i.e., não admite parvidade de matéria (não pode nunca constituir pecado venial, ao menos não pelo seu objecto); e embora o que se diga a respeito da cooperação com o mal não faça menção à gravidade do pecado com o qual se coopera, é no mínimo temerário aderir laconicamente à tese de que ela é indiferente. Ou pode-se licitamente tentar convencer a matar um inocente só quem está já disposto a matar dois?

Segundo, e talvez mais importante, porque, in casu, o pecado que se instiga e aquele que se pretende evitar não estão no mesmo plano. O primeiro existe, formalmente, na medida em que o sujeito está decidido a fornicar; já o segundo não, porque a concepção de um filho não lhe é directamente visada, e nem muito menos o eventual aborto com o qual ele teria — presumivelmente — a pretensão de se descartar da sua responsabilidade parental. É muito diferente do caso de convencer fulano a ferir o sujeito que ele pretende matar: aqui já existe o pecado do homicídio, presente no intelecto do agente, em vias de execução quase, e persuadi-lo a “apenas” dar uma surra no seu rival faz, assim, sem dúvidas, e propriamente, o papel de evitar um assassinato concreto.

Não é absolutamente o mesmo o caso do aborto, tanto por ele não passar de uma probabilidade cuja existência não depende do contraceptivo para ser afastada (afinal, a menina pode simplesmente não engravidar e, portanto, a questão do aborto pode não se colocar jamais) quanto porque ele não era, no momento do pecado, objecto do querer do agente (cuja vontade pecaminosa era simplesmente a de fornicar, e não de abortar — e, portanto, diferente do que ocorre no caso do homicida, aqui o pecado efectivamente cometido é exactamente aquele inicialmente desejado, sem diminuição alguma).

Mas há ainda um terceiro ponto que se deve ter em conta, e ele considera os efeitos sociais da atitude de cooperação para o mal. Porque se imagina, no caso do sujeito disposto a matar o seu rival, que convencê-lo a feri-lo não passa de uma solução de emergência, de um caso fortuito, raro e eventual: não passa pela cabeça do moralista, suponho, a possibilidade de que o espancamento público de rivais viesse a generalizar-se — e socialmente aceite — de cercear os instintos assassinos do ser humano. Não se concebe que, de pecado, ferir o seu inimigo passe a ser visto como uma coisa banal e indiferente, ou mesmo positiva até, a ser incentivada e vista com naturalidade.

Ora, no caso dos contraceptivos é exatamente isso o que acontece. Não se vê a pílula como um mal menor a ser eventualmente utilizado em situações excepcionais cuja premência impede uma solução mais adequada: apresenta-se-lhe, ao contrário, como a solução ordinária e definitiva em matéria sexual que, se evita maiores males (como o aborto), fá-lo às custas da naturalização generalizada do pecado — já grave — da fornicação. 

Se é possível contrapesar pecados tratando-se de escolhas individuais, não parece contudo ser lícito institucionalizar alguns pecados nem mesmo para mitigar outros mais graves. A lógica da cooperação com o mal só faz sentido dentro dos estreitos limites em que o pecado é tratado como pecado; é uma lógica de contenção perplexa e não de excepção moral. Se se perde isso de vista e se o mal passa a ser visto com naturalidade, então talvez não se esteja mais a evitar um “mal mais grave” — e, sem isso, cooperar com o pecado alheio deixa de ser lícito.

Jorge Ferraz in Deus lo vult


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